O MANIFESTO QORPO-SANTO

Paulo Bauler
para Pina Coco e Elizabeth Kasper







APRESENTAÇÃO:

        Qorpo-Santo, eu devo confessar, era para mim uma figura literária do tipo daquelas que guardamos na memória por uma referência de titulação, sem que da respectiva pasta conste pouco mais que páginas em branco, à espera de que algum dia saibamos efetivamente o que nos significa. Com efeito, todos os que nos habituamos à leitura mais ou menos ligeira de periódicos literários, temos guardado o nome Qorpo-Santo muito mais pela grafia heterodoxa da palavra corpo do que pelo que ele significa para a dramaturgia, a poesia, a teoria literária, o direito, o jornalismo, enfim, para todo o universo de reflexão cultural. Foi por interesse acadêmico que mergulhei no universo aparentemente só absurdo desse homem genial que soube - como todos os grandes criadores de arte - transformar o chumbo de sua existência no ouro das mais fulgurantes jóias da arte lítero-dramática já conquistadas pela natureza humana. Que me seja perdoada uma certa parecença com o exagero. Também Qorpo-Santo a utilizava em relação à própria obra, muito embora (e, arrisco, et pour cause) a radical opção pela simplicidade em seu discurso literário. Atribua-se então aos meus insuficientes recursos de retórica a, eventualmente, por adjetivação apaixonada, não obter conseguir transmitir ipso facto toda a grandiosidade autêntica da contribuição de Qorpo-Santo, que ultrapassa, em inventividade, as fronteiras da literatura do Rio Grande do Sul, e mesmo as do Brasil.
        Tendo perpassado por praticamente toda a bibliografia existente sobre a obra de Qorpo-Santo, consultado os seus escritos a partir de originais disponíveis, entrevistado autores e artistas e intelectuais envolvidos com a obra qorpo-santense, percorrido toda uma via láctea a integrar os conhecimentos que me iam chegando aos borbotões, optei por construir o presente estudo à maneira de Nietzsche (em Além do Bem e do Mal/Prelúdio a uma filosofia do futuro, Ecce Homo, etc.), de Schlegel (em Conversa Sobre A Poesia), da poética de Eliot (A Terra Desolada), e de muitos outros, resgatando uma tradição dos filósofos pré-socráticos, qual seja, a exposição por fragmentos.
        Tal método possui duas vantagens: a uma, deixa clara a minha própria convicção de que o conhecimento humano se processa por partes fragmentárias, que jamais domamos a Totalidade, que todo o aparente domínio sobre um discurso linear das realidades se deve apenas ao olhar arbitrário e ficcional do agente, que une as partes num totum discursivo, a lhe proporcionar uma coerência ideológica sempre tão distante da matéria viva correspondente ao que se pretende enunciar. Em se tratando da obra de um autor ainda tão pouco estudado pelos doutos, com muito mais razão tal formulação se faz conveniente. A duas, porque essa metodologia corresponde, e isto quer dizer também que o autor o aceita por completo, ao olhar pós-modernista sobre a matéria social e artística, a saber insistentemente que nesta virada de milênio a cultura encontra-se aos fragmentos, desmantelada a golpes dos mais diversos martelos do pensamento toda a pretensão de imprimir-se aos cérebros da modernidade realidades subjetivas, sempre ficcionais, sob a máscara de uma coerente objetividade, realidade, ou seja lá o que se queira. Humildade e honestidade intelectuais se encontram, no fragmentarismo, com uma cerrada disposição de exibir-se, o discurso, a partir de diversas e questionáveis perspectivas que exsurgem de um ou, como já percebia Qorpo-Santo (Hoje sou um; amanhã outro), de muitos outros particulares lugares da cultura.
        Por outro lado, se o pós-modernismo é um resgate do caos como a realidade sobre a qual o humano se impõe, uma busca da harmonização e equilíbrio entre as forças da natureza anárquica (numa perspectiva da construção do humano), podemos dizer, dionisíaca, e o sistema ficcional ordenativo que deriva da vida em sociedade, fruto de um desiderato apolíneo/iluminista, a obra de Qorpo-Santo o utiliza, na plenitude de sua verve criadora de uma fenomenologia do absurdo, precisamente porque, e nisso antecipa o futuro, enxerga esse conflito na realidade cotidiana e o reproduz em sua arte. Daí o fragmentarismo presente em sua Ensiqlopèdia, tratando dos mais variados assuntos desordenadamente, numa fantástica colagem e nivelação dos elementos da vida tanto quanto do pensamento. Prosseguir a linhagem, buscar compreender não a totalidade, mas sempre um pouco mais de sua obra, obter e manter a possível interação do nosso olhar ao mesmo do olhar de Qorpo-Santo, é louvá-lo com a tentativa de dele aproximar o espírito, a alma, ao invés de pretender ver, nos espaços vazios do caos que, antes, lhe precede, lacunas literárias, mas justamente o oposto, pois nele o caos, o vazio, mesmo o absurdo da incompletude, são tão sujeitos de literatura, e de absurdidade, quanto o seu preenchimento, a constante tentativa social de sua superação. Qorpo-Santo dança com o caos.
        Achei por bem, ainda, entremear meus próprios fragmentos com fragmentos da obra de Qorpo-Santo buscando, com essa estética até certo ponto abusada, manter, além de um mesmo clima qorpo-santense, permanentemente ao longo do meu próprio discurso, a sarça ardente do seu ideário.
        Quanto ao título escolhido, Manifesto Qorpo-Santo, tem por objetivo sugerir duas ordens de idéias: a primeira, de natureza estética, no sentido sensível de ver no recente interesse pela sua obra uma manifestação terrena de um qorpo que, nas palavras do autor, subiu aos céus; a segunda, para acentuar o caráter vanguardista da obra de Qorpo-Santo, e de pronto anunciar que se pretende trabalhar no plano daquilo que o faz singular, singularidade esta que manifestou aos seus contemporâneos, e que só agora nos é concedido ouvir e compreender.
        A importância maior do estudo da obra de Qorpo-Santo nesses inícios de século XXI pouco ou nada tem a ver com um eventual resgate de valores culturais regionalistas. Mas reside justo no fato de que só nós, seus companheiros em espírito, e a exemplo do que ocorre com a obra de Sousândrade, o podemos compreender e interpretar. É que, repita-se, vivemos em pleno pós-modernismo, tanto na vida material quanto nas artes todas, em que o fragmentarismo larga sua função apenas metodológica para constituir-se em prática social e artística. Constituindo mesmo a única maneira, com todas as ressalvas que o paradoxo aponta, "unitária" de se perceber a realidade e a alma de nossos tempos. Pois hoje, mais que nunca, em todas as histórias das humanidades ocidentais, desde os pré-socráticos, fervilham, ao mesmo nível das relevâncias, seja a que título for, os muitos modos de ver e de ler o mundo, muito especialmente as escritas todas, as que o humano inscreve de múltiplas formas em sua própria humanidade.

...porque não pode haver mundo, nem haveria distinções se tudo fosse igual. Parece que as diversidades constituem a harmonia na espécie humana. (Qorpo-Santo, em O Hóspede Atrevido; ou O Brilhante Escondido)

MINISTRO - Primeiramente,saiba V.M. de uma grande descoberta no Império do Brasil, e que se tem espalhado por todo o mundo cristão, e mesmo não cristão! Direi mesmo - por todos os entes da espécie humana!

O REI (muito admirado) - Oh! Dizei; falai! Que descobriram - é erro!?

MINISTRO - É cousa tão simples, quanto verdadeira:


1a. - Que os nossos corpos não são mais que os invólucros de espíritos, ora de uns, ora de outros; que o que hoje é Rei como V.M. ontem não passava de um criado, ou vassalo meu, mesmo porque senti em meu corpo o vosso espírito, e convenci-me, por esse fato, ser então eu o verdadeiro Rei, e vós o meu Ministro! Pelo procedimento do Povo, e desses a quem V.M. chama conspiradores - persuadi-me do que acabo de ponderar a V.M.
2a. Que pelas observações filosóficas, este fato é tão verídico, que milhares de vezes vemos uma criança falar como um general; e este como uma criança.

(Qorpo-Santo, trecho de Hoje Sou Um; E Amanhã Outro) (I)

Linguagem

"Falão-se os montes,
Falão-se as fontes,
Falão-se as feras,
Falão-se as pedras!
- Todos se falão!

Falão-se os gatos,
Falão-se os sapos,
Falão-se as aves,
Falão-se...as traves!
- Todos se falão!

Falão-se os broncos,
Falão-se os troncos,
Falão-se os peixes,
Falão-se os feixes!
Todos se falão!

Falão-se os rios,
Falão-se... os frios,
Falão-se os ares,
Falão-se os mares!
- Todos se falão!

Falão-se os galos,
Falão-se os lagos,
Falão-se as cassas,
Falão-se as massas!
- Todos se falão!

Falão-se as pennas,
Falão-se as scenas,
Falão-se as cazas,
Falão-se as brazas!
- Todos se falão!

Falão-se as vinhas,
Falão-se as pinhas,
Falão-se os livros,
Falão-se os bilros!
- Todos se falão!

Falão-se os barros,
Falão-se os jarros,
Falão-se as faxas,
Falão-se as taxas!
- Todos se falão!

Falão-se as redes.
Falão-se as...sedes,
Falão-se os bixos,
Falão-se os nixos!
- Todos se falão!

Falão-se os sernes,
Falão-se os vermes,
Falão-se as flautas;
Falão-se as pautas!
- Todos se falão!

Falão-se os tigres,
Falão-se os livres,
Falão-se os tactos,
Falão-se os fatos!
- Todos se falão!

Falão-se os matos,
Falão-se os ratos,
Falão-se as fibras,
Falão-se as tigras!
- Todos se falão!

(Qorpo-Santo, 1877)

a.        A ENSIQLOPÈDIA: ou Seis Mezes de Huma Enfermidade, de Jozè Joaqim de Qampos Leão Qorpo-Santo, nome de batismo modificado em grafia e em acréscimo de sobrenome fictício - Qorpo-Santo - é uma obra que pode ser interpretada e avaliada de muitas maneiras: mas jamais que seja o resultado dos devaneios de um louco, fruto de um "espontaneísmo" desordenado, de um automatismo de escrita (que aliás seria, muito mais tarde, aproveitado pelo dadaísmo e pelo surrealismo como método para o fazer artístico), cujas inovações estéticas seriam mero resultado do acaso. A não ser que se queira tão louco quanto o consideraram seus contemporâneos, todo aquele que aceita a validade posterior dessas mesmas inovações. É preciso que se enterre de vez o mito de ter sido Qorpo-Santo um esquizofrênico (ou monomaníaco, como o queriam seus contemporâneos). Isto leva a muitas conclusões apressadas. E a primeira delas é a de que sua obra, com maior prejuízo da teatral, é "espontaneísta", fruto de um automatismo de escrita sem sentido, próprio ou de um débil mental ou de um xamã. Até mesmo o diagnóstico psiquiátrico, monomaníaco, é absurdo. Pois não há "mono" algum em sua obra, que é, como veremos, absolutamente pluralizada, fragmentada.

b.        Considerar Qorpo-Santo louco, embora muitos acreditem que estejam alimentando o folclore (que em Porto Alegre chegou a ser usado para assustar as crianças de outrora), estão em verdade engrossando as fileiras de um conservadorismo que marginaliza em proveito próprio, como parece ter sido o caso de elementos da sociedade do seu tempo. Pior, confundindo obra/autor, num biografismo negativista, reduzem as proporções estéticas da obra de Qorpo-Santo, deixam de perceber suas correlações com as correntes de idéias que permanecem no tempo, impedindo que uma nova leitura da sua obra ganhe as merecidas proporções e atualizações, no sentido de inseri-la nos trâmites literários da pós-modernidade, com vistas ao esclarecimento desta, especialmente quanto à verificação dos antecedentes de sua linhagem literária. No mais, estão a aceitar a cegueira dos que, em sua época, não lhe aproveitaram o talento. Assim fazendo, aceitam um dos métodos preferenciais das mediocridades históricas em alijar a inteligência em favor dos poderes criticamente organizados. E atrasando a sociedade humana, mormente a de nossas terras, em estabelecer mecanismos de aproveitamento, pior, de desenvolvimento, dos talentos individuais de difícil absorção, prática e imediata, pela organização social do seu tempo. Algumas sociedades já os possuem.

c.        O que José Joaquim Campos Leão Qorpo-Santo criou, antes de tudo, como ato primeiro da cena primeira de criação do seu universo literário (e se o escritor é um criador de mundos, será também um criador de si mesmo, enquanto criador desses mundos, nos quais se insere, equiparando-se, assim, ao Deus-Verbo, auto criador, auto gestor absoluto de toda a sua criação) o que ele primeiro criou, enfatize-se, foi uma personagem para si, personagem maior do drama da existência ficcional por ele, verbo-criador, feito carne-palavra: Qorpo-Santo.

d.        É mesmo impressionante que aqueles que analisam a obra de Qorpo-Santo a partir de sua vida, num biografismo literário que já ao tempo de Sainte-Beuve, criador do método, se fazia questionável, consigam passar incólumes por esse fato primeiro, fato admirável de criação de ficção literária, a ponto de gastarem tanto verbo inútil acerca de uma muito pouco provável doença mental. E o que importaria mesmo para a interpretação de uma obra literária as eventuais idiossincrasias de seu autor? Já sabemos que em muito pouco. Apenas aqui e ali, subsidiariamente, no esclarecimento de pontos obscuros da obra. Mas no caso de Qorpo-Santo, a começar por esse sobrenome ficcional nada convencional, exacerba-se a tal mister essa imagem detratora, que acaba confundindo-se o nome ficcional com uma espécie de louco do tarô. Mais de uma vez obtive esta resposta à pergunta sobre quem teria sido: "Qorpo-Santo! Ah, já sei! É aquele maluco...". E vai-se ficando por aí...

e.        Pois bem. Detendo-se numa reflexão menos superficial sobre o nome qorpo-santo, em relação direta com a sua obra, e mesmo juntando-se estes aos subsídios fornecidos por uma autobiografia (II), observa-se que sua genialidade manifesta passa conscientemente por um processo de criação racional, a fazer justamente o contrário daquilo que alguns afirmam, tal qual provavelmente o faziam seus contemporâneos, como sendo auto-exaltação megalômana, espontaneidade primária, automatismo imotivado de escrita. Qorpo-Santo estabelece desde o início as fronteiras, as demarcações de método, estilo, linguagem, tema central e temas subsidiários, enfim, constrói rigorosos diques de contenção aos violentos esparramos de sua inteligência criadora, e a tal ponto, que necessita "re-criar" um "deus" em si, para dar conta da formidável tarefa literária a que se propôs. Pois de plano havia, por si e para si, se dado conta de que tudo aquilo que tinha por necessidade dizer aos demais humanos (necessidade literária, aquela necessidade que Proust considerava essencial ao ato literário), extrapolava, e em muito, os parcos limites das convicções filosóficas, sociais e estéticas do seu tempo. Suas crenças, seus saberes, seus parcos modos de ler.Descobrira, através do seu íntimo processo, de opção radical pela literatura, o caos. O caos varrido para debaixo do tapete das estruturas e instituições sociais. Descobrira o absurdo por trás os panos elegantes e só aparentemente realistas e racionais dos ordenadores e coordenadores da sociedade humana. Descobrira o absurdo das relações sociais. Daí à sua idéia das relações naturais, parece-nos, hoje, apenas mais um desses brinquedos de crianças. E mesmo hoje, em assim pensando, ainda seremos nós as crianças diante da sua maturidade literária.

f.        Qorpo-Santo criou para si uma autêntica epistemologia literária. Por isso que o nome Qorpo-Santo deriva da necessidade do autor de incorporar-se radicalmente em criador de uma obra que lhe chegava aos borbotões, e que necessitava de direção e método para ser bem realizada. De um modo geral, e infelizmente, mesmo admiradores de sua obra olham-no, quanto a esse aspecto, com os mesmos olhos dos seus contemporâneos do século XIX. Apenas olham-no com simpatia; apenas reconhecem nele uma genialidade difusa. É pouco, muito pouco. Pois - e até nisso nosso escritor foi precursor - Qorpo-Santo fez mais: pelo radicalismo com que se amalgamou vida e obra, numa entrega absoluta de espírito à sua vocação, alçando-a à condição do sagrado, coragem própria de samurais e sacerdotes, Qorpo-Santo fez mais. Para tanto do que fizeram outros tantos, nessas Histórias da Literatura, que criaram para si outra persona, outra imagem literária, outra máscara, para dar conta de pensar e viver e, portanto, escrever, aquilo que o respectivo gênio literário exigia. Tal Fiódor Dostoiévski, que se desdobra em dialogismos a mostrar quantos habitam o indivíduo; passando por tantos que criaram para si pseudônimos, para além do simples intuito de distinguir vida e obra; ou os que fizeram de si mesmos personagens, como um Henry Miller, ou um outro anárquico pós-moderno como Charles Bukowski; pois em verdade se diga, Qorpo-Santo fez isso: Entregou a vida em eucaristia do sagrado em si, do Deus Literário em si. Ajoelhemo-nos...

g.        Quando Salvador Dali cria seu próprio e peculiar método de fazer artístico, autêntica epistemologia, criação que se cria a si mesma, o método paranóico-crítico, não o tomaram propriamente como um louco, mas como um charlatão. E na escala dos malditos, a condição de charlatão certamente possui uma conotação menos depreciativa que a de louco, maluco, desmiolado, doente mental. Mesmo considerando o fato de que a contemplação da arte plástica e, conseqüentemente, sua interpretação, mais facilmente se presta a homenagens que obscuros textos literários, impressiona o fato de que a obra dramatúrgica de Qorpo-Santo tenha descansado no anonimato por exatamente um século, e que só nessa virada de milênio sua obra poética tenha vindo à luz dos prelos. Se formos investigar suas causas, a primeira possibilidade que nos ocorrerá será a de que temos olhos gananciosos para a invenção literária que nos vem de fora do nosso universo criador; olhos míopes para as nossas próprias criações inteligentes, arte genuinamente original, salvo quando representa um modo de ver regional, salvo quando consagra os modos de ler, tema e texto, dos grupos organizados de poder literário, de todos os quadrantes, que patrulham - mais pela atitude pessoal do artista, que pela sua obra de arte - os desvios de conduta, próprios à genialidade criadora só individual.

h.        Não se trata aqui de nenhum xenofobismo, nem mesmo de pleitear para Qorpo-Santo o galardão de haver inventado o teatro do absurdo, como insistem em defender alguns estudiosos e admiradores da sua obra. Ouça-se Antonio Carlos de Sena (III), teatrólogo que primeiro montou uma peça de Qorpo-Santo, justamente cem anos depois do dramaturgo ter encerrado o conjunto de 17 textos para teatro que conhecemos (agosto de 1864). Apesar de ser um dos que apóiam a tese, ele mesmo nos informa que a idéia dessa montagem pioneira, no Clube de Cultura de Porto Alegre, surge a partir da verificação de uma série de coincidências entre um "estranho" texto de Qorpo-Santo (Mateus e Mateusa) e um texto do teatro do absurdo de Ionesco (As Cadeiras). Além da estranheza e absurdidade comum a ambos os textos, ainda em ambos há um casal de velhos que se desentendem, e que pretendem passar mensagens para o mundo. Em As Cadeiras, há um mudo que gesticula absurdamente; em Mateus e Mateusa há um criado, de nome Barriôz (IV), que entra na última cena com um discurso despropositado. Portanto, e muito embora a antecedência do texto escrito, o que fala mais do acanhamento intelectual de seus contemporâneos e sucessores até a década de 1960, quando e só então foi encenado, o certo é que Qorpo-Santo não inventa o teatro do absurdo, como querem muitos, mas é por este justamente recuperado, como um dos que - e o mais antigo deles, pelo que se sabe - realizaram a sua escritura, inscrevendo-o nas Histórias da Dramaturgia.
        Mas o teatro, como sabemos, não se faz apenas com a escritura; o texto de teatro, ao contrário do romance, ainda não é o teatro. Para tanto, ainda se depende dos elementos de palco e dos artistas ligados à sua representação (V). Por conseguinte, em que, para a fundação de uma espécie de dramaturgia, uma antecedência cronológica só textual importa?
         Aliás, essa mesma perspectiva de mera antecedência cronológica já foi utilizada por muitos a considerar que Baudelaire, o criador da poética da modernidade, o fez por influencia de Allan Poe, de quem foi leitor, tradutor e divulgador. Quando em verdade foi justamente a poética do autor de As Flores do Mal que acaba por anunciar, até mesmo para a literatura americana, a obra do autor de O Corvo. Tal qual se pode dizer da obra de Ionesco em relação à obra de Qorpo-Santo. O mais importante é que nosso Qorpo-Santo problematiza em sua época algo muito maior: a inutilidade - daí absurdidade - de um ordenamento humano imposto em contrário à pluralidade da natureza humana, indiferente às suas condições caóticas, cuja redenção vem a ser uma das pedras fundamentais do pensamento pós-moderno. É isso que o faz tão atual, é isso que lhe concede o grau de perenidade. É isso que faz tão relevante para os tempos atuais uma releitura de sua obra, a encenação de suas peças. E que sirva de lição aos distraídos a omissão havida. O futuro tarda, mas não falha. E ainda quase sempre nos vem em pesadas mãos estrangeiras.

Relação natural.

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Derribada c'o vento - de pedras cêrca,
De tantos humanos - similhantemente,
Como dellas, talvez fosse - igual perca!...
Saber tão grande, - não m'é dado á mente!

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Relacionado tudo - como está,
Sempre saibamos - forma mysterioza,
A nós homens - só admirar compete;
Á Natureza - só variar - agrada! (VI)

i.        A julgar pela ordem cronológica e bibliográfica da Ensiqlopèdia, Poesia e Prosa/Livro 1 - Teatro/Livro 4, o poema acima antecede a peça As Relações Naturais, demonstrando, portanto, que essas sempre foram das principais preocupações de Qorpo-Santo, constituindo mesmo um dos pilares fundadores da sua obra. Relações naturais, normais e de acordo a natureza das coisas, e não relações sociais absurdas, que as violentavam, eram essas as suas primeiras reflexões. Mas isso não quer dizer absolutamente que tudo se resumia a um retorno à natureza rousseauniana, a apologia do bom selvagem. Ao contrário, Qorpo-Santo tinha exata noção da força caótica da natureza em relação ao humano, como, aliás, o final do poema bem o sugere e a peça deixará muito mais claro adiante. Nem era a arbitrária substituição destas por relações sociais só aparentemente racionais, pois que as percebia igualmente caóticas, tão absurdas quanto, em sua constituição e exercício (conforme ele mesmo sentia à própria pele, especialmente pela experiência kafkiana em tentar provar, perante a justiça, a sua sanidade mental, peticionando e submetendo-se a exames médicos, até mesmo em lugares tão distantes como o Rio de Janeiro, publicando sua saga judiciária em sua Ensiqlopèdia). Qorpo-Santo se colocava muito mais como um observador, primeiro, dessas relações todas - naturais e sociais - para, então, delinear-lhes, e delinear-lhes esteticamente, os modos e as formas, o que só lhe parecia possível pela ascese espiritual, pela superação de ambas, pela divinização literária do seu ser, pela elevação da sua natureza humana para além da própria natureza, para além da própria sociedade, que percebia ser absurdo, demasiado absurdo... Para um além do humano-absurdo seguia o seu pensamento. Do outro lado do mundo, um filósofo faria dessa idéia um dos mais firmes pilares da sua novíssima filosofia. Não por acaso também considerado louco; não por acaso também só compreendido aos cem anos depois. (VII) Tal qual Nietzsche, Qorpo-Santo tinha absoluta convicção intelectual e artística, e, portanto, do seu fazer literário, por experimentá-lo corajosamente em si, na solidão de si mesmo, ao realizar a terrível opção - literária - de tornar-se o que se tornou: guerreiro e sacerdote de uma fé, a fé literária, decorrente de ter-se literariamente elevado a matéria densa pensante (por isso "Qorpo-") aos céus da criação (alimentado pelos Reis do Universo (VIII)) e ao próprio Criador (por isso que "-Santo").

FÉ (XIV)

Por fé qe tenho - nada temo,
Quando falo, quando esqrevo!
A Deus pedi,
E esqrevi:
Jamais - por meus lábios - êrros,
Qonsenti, Senhôr - qe eu profira!
Ou qe minha língua pronuncie
Juizo, qe á qonviqção - fira!

j.        Assim, pois, se a natureza e as relações naturais que dela decorrem possuem suas próprias razões de - variar, a realidade sócio-humana, impondo-se à realidade natural, o faz sem nenhuma razão lógica, gerando, com isso, a absurdidade, o regresso ao invés do progresso. Esta, a realidade moral, é pura ficção, circo, absurdo, pantomina, irrealidade, imaginação, teatro de variedades. São ação e discurso desconexos, não apenas "fora" das relações naturais, mas mesmo absurdamente "contra" as relações naturais. Estas, no entanto, seguem fazendo o seu trabalho. As pessoas assim colocadas são, pois, meras marionetes de "espíritos" (uma explicação literária do absurdo) que agem nas mentes dos indivíduos, provocando-os o agir e o falar de acordo com as suas - "espirituais" - vontades. Por isso, hoje são umas; amanhã, outras. Ora um general fala como criança, ora uma criança fala como um general. (XI) Para pintar a absurdidade, e não por uma aceitação estética de um moralismo realista próprio à segunda metade do século dezenove, o teatro de Qorpo-Santo contrapõe dois discursos dramáticos: como se o primeiro, empostado, moralizante, próprio do teatro realista então em voga, pareceria O Bem; e, o segundo, representado pela movimentação cênica sugerida em seus textos, pertencente à farsa, ao baixo cômico, ao circense, à comédia de costumes, que faria a glória de um Martins Pena na década de 1840, por exemplo, seria tido como O Mal (XII). Mas essa é uma percepção ainda superficial e ligeira da sua estética teatral. Pois absolutamente: Qorpo-Santo não deixa pedra sobre pedra. Ambos são O Mal, no sentido de que ambos são caóticos, absurdos. Nenhum movimento há em Qorpo-Santo que não seja o delineamento radical das absurdidades da própria existência humana, premida entre suas condições naturais e morais, ambas igualmente desconexas da ação e do discurso humanos, tal qual, e isso é o menos relevante à análise literária da sua obra, observa no contexto social com o qual está literariamente envolvido. Basta anotar que, em Mateus e Mateusa, o confronto absurdo, circense, que transcorre durante toda a peça, encontra seu desfecho num discurso - igualmente absurdo - moralizante, feito por um...criado, e que só aparece no final! Cujo nome, Barriôs, muito provavelmente tenha sido inspirado ou num homônimo ditador bufão de El Salvador, escorraçado do poder e fuzilado em sua época, ou num advogado com quem Qorpo-Santo andava às turras. (XIII). Isso deixa claro, portanto - e aqui se mostra a exata proporção de aplicação do método biográfico - a intenção estética de registrar, ainda esteticamente, a absurdidade do discurso moralizante. A obra de arte literária se explica pela sua estética. O fato biográfico apenas subsidia a compreensão textual, morfológica. E jamais decide a sua gênese.

k.        Se há uma aparente "facilidade" na escritura do teatro de Qorpo-Santo, como se a ação dramática, se desenvolvendo a partir de quadros "desconexos", resultasse de um "espontaneísmo" do autor, fato é que isto decorre de uma necessidade estética, ao modo de desenhar, literariamente, as mesmas relações humanas, caóticas, que em sua existência, já literariamente radicalizada, estavam, ainda literariamente, a se exibir perante seus olhos literários. A vergastar a sua carne (qorpo) e a sua consciência (santo), "literaturizadas". Por isso que, na só aparente simplicidade do seu poema CENSURA (IX),, mantendo o clima de absurda comicidade, a personagem Qorpo-Santo declara à praça dos apressados censores que a sua obra, absurda, é tal qual (fiel retrato) a absurda realidade humana...

                        Minhas obras esqritadas (X)
                        Não podem ser censuradas!
                        Pois estão relacionadas

                        Qom as qouzas enxergadas!
                        Delas são - fiel retrato,
                        Qual de fotografia - acto!

l.        Para Qorpo-Santo o "desconexo" é o mote principal da ação humana. Absurdas são as relações sociais, em que as pessoas (pessoas virtuais, em verdade) agitam-se em atos e falas (vida e discurso), ora como se uns, ora como se outros. Vivendo uma série inesgotável de situações fragmentadas, não apenas desconectadas de qualquer realidade, mas, na maior parte das vezes, contraditórias, negando a si mesmas, em relacionamentos sociais tão caóticos quanto absurdos. Os humanos como meras marionetes de uma existência sem qualquer sentido lógico. Subjacente a isso tudo, o descompromisso moral das relações naturais, caprichosas em sua essência. Daí a "simplória naturalidade" da escritura de Qorpo-Santo, necessária às convicções estéticas que obteve no exercitamento do seu ofício literário, em que fez da própria existência o palimpsesto sobre o qual redigiu seus primeiros rascunhos. Personagem de si mesmo, seu qorpo, submetido às absurdidades das relações naturais na sociedade humana, torna-se santo, torna-se texto literário. Pois só de uma perspectiva de um personagem-autor, de um qorpo-santo, é que poderia realizar uma obra literária suficientemente pura a traduzir em arte as absurdidades que flagrava no contexto natural (material) e moral (ideológico) da existência humana. Nele, como em todo artista de gênio, é a obra que explica a vida.

m.        O teatro de Qorpo-Santo é, sim, a contraposição de um discurso moralista do realismo de época, ao discurso circense da ópera bufa. Mas não para exaltar um e negar o outro. Nem mera opção formalista maniqueísta de bem/mal. Porque ambos eram absurdos, o teatro de Qorpo-Santo é a exibição absurda do absurdo da comédia humana, a representação dramática dessa absurdidade, desnudando tanto a pretensão realista de aproximação com o real, realismo de época, como a própria comédia de costumes, ao lhe inserir (contrapor) o componente da ridícula (novamente absurda) aparente cientificidade do discurso de moral positivista que, no final das contas, é o que acaba prevalecendo no espírito dos espectadores dessas comédias. Neste sentido, Qorpo-Santo negava gregos e romanos, no teatro assim na vida, inclusive porque nisto reside o fato (conseqüência, não causa, de sua literatura) de pilhar-se um "desempatotado", tal qual já se disse, alhures, de um Cruz e Souza, por exemplo. O real humano, drama ou comédia, é, para Qorpo-Santo, falso, caótico, absurdo. Mais dado ao regresso que ao progresso, como proclama o absurdo criado de Mateus e Mateusa. O absurdo ganha, portanto, voz. Não como um elemento do sensato, mas como um diálogo do absurdo com o absurdo. Pois se tudo se mostra absurdo, que linguagem, que retórica, senão as do absurdo, farão com que o seu texto ganhe consistência literária, na medida que parceiro da absurdidade em que se envolvem todas as relações humanas? Nada de acaso, nada de "espontaneísmo", portanto. Qorpo-Santo criou uma sua própria linguagem dramática, linguagem necessária e suficiente à representação das próprias idéias literárias; idéias essas que o levaram, com urgência e heroísmo, à condição de pensador e inventor de estética literária. E que, houvesse sido contemplada em sua época, talvez antecipasse a modernidade. O que nos aproxima da relevância da Literatura para o progresso geral das cidades.

Por certo que é meu dever
- Trabalhar quanto eu poder
No que pósso - acompanhar;
No que pósso - auciliar!

n.        Tudo em Qorpo-Santo parece fugir à reta razão quando se trata de estabelecer um fio condutor linear de seus pensamentos. Quando já vamos acreditando haver decifrado seus códigos de escritura e representação, quando aprisionamos uma linha de idéias na esperança de haver desvendado o seu sistema estético, eis que outra ordem possível de conclusões surge, como se do nada, fazendo desabar, como num passe de mágica, todo o edifício arduamente construído. Em As Relações Naturais, por exemplo. Após um início "autobiográfico", de lamentação pelo ofício de escritor, assistimos toda uma apologia das "relações naturais" como desregramento dos instintos, especialmente os sexuais. O que conduz o espectador a aceitar, sem maiores questionamentos, a crítica moralista a esse tipo de atitude, quando, na cena final, Inesperto, o criado (talvez o mesmo de Mateus e Mateusa), dá uma lição nas mulheres dionisíacas (aqui, uma espécie de bacantes), agredindo-as com pedaços do corpo do amo. Elas, imediatamente à saída de cena do criado, sem mais porquês, enxugando as lágrimas, passam a cantar em louvor da repressão dos próprios desejos instintivos. Nada mais patético. Mas o modo abrupto com que mudam o discurso, aliado às suas últimas falas, pode sugerir uma "esperteza irônica" das defensoras das relações naturais. A mensagem moral do texto, neste caso, apontaria na direção libertária, ou seja, a liberdade dos instintos naturais como um bem maior. Já a fala do criado, o seu discurso pela ordem social, indicariam justamente o contrário: elas, aquelas mulheres amantes dos prazeres e dos instintos, das relações naturais, seriam mesmo o "mal"; ele, o criado, o leal servidor, o combatente da dissolução social, seria, por contraponto, o verdadeiro "bem", mensagem moral da peça. A opção por essa última interpretação simplista levaria à conclusão - a que não se poderá escapar, na mesma linha de raciocínio - que Qorpo-Santo teria criado o teatro do absurdo moralista. Nada mais absurdo. Um pouco menos, porque cômico. Tudo seria assim tão simples e lógico, não fora o nome do tal criado, defensor da moral e dos bons costumes: Inesperto.
        Que se observe, de entremeio, as interessantes conclusões a que se poderá chegar, a partir de uma análise semiológica das funções das personagens de Qorpo-Santo, especialmente quanto à metafórica presença desse criado Inesperto, de As Relações Naturais. Será algo distinto do papel reservado ao que aparece à cena final de Mateus e Mateusa, o Barrios? Ou se aproximaria mais do Ministro, de Hoje Sou Um; E Amanhã Outro, na medida em que ambos "esquecem", temporariamente, suas respectivas posições hierárquicas? Sendo até mesmo (e aí sim a aplicação do método biográfico nos traria alguns frutos) muito possível que, em ambas as peças, Qorpo-Santo, a personagem-autor desses textos, se desdobre em várias personas: a do ministro conselheiro, do escritor Impertinente, do sábio Qorpo-Santo e até mesmo do criado Inesperto, na cena macunaímica em que lança pedaços de carne humana à sanha antropofágica da fêmea primeva. A comicidade esconde, aqui, a tragédia humana.
        O certo é que o discurso moralista é, em todos esses casos, absurdo: absurdo por inoportuno, absurdo por inconveniente, absurdo por despropositado, absurdo por inesperto. Fato é que o espetáculo torna risível ambos os discursos moralistas, tanto o da ordem dita moral (Hobbes) quanto o da ordem natural (Rousseau). Qualquer interpretação (e encenação) das peças de Qorpo-Santo não pode deixar de considerar esses elementos de máxima força na construção do seu teatro... do absurdo da existência humana. Absurdidade esta que viria ser, muito mais tarde, o ponto de partida filosófico para toda a literatura existencialista, de Sartre a Camus.

Abri-me em qualquer parte;
E lerás coisa que farte! (XVI)

o.        Dada a constância e o desdobramento múltiplo dos elementos de retórica absurda na obra de Qorpo-Santo, não há como definí-los senão como traços riscados à régua estética do artista, dramaturgo consciente. Neste sentido, o depoimento de Antonio Carlos de Sena, homem de teatro, é esclarecedor quando atesta que Qorpo-Santo também devia ser um homem de teatro, pois seus textos levam em consideração aspectos técnicos da encenação teatral, chegando mesmo a considerá-lo um precursor do que viria a ser a moderna montagem de textos teatrais. (XV)
        A sua noção de obra aberta, por exemplo, expressa no convite (que deve ser compreendido em toda a sua extensão literária) a que outros autores participem do seu texto, aponta, a par de outras interessantes considerações estéticas, no sentido da realização de um teatro participativo impensável à época. Fosse-lhe possível encená-las então, quase certo que entre esses co-autores incluir-se-ia o público espectador... Como se vê, o absurdo, sua matéria-prima literária, desconhece limites...

p.        Fosse o observador da realidade, natural e social, que o rodeava, fosse o artista, Qorpo-Santo adotava o método fragmentarista (mais uma absurdidade reveladora), daí a sua Ensiqlopèdia, à melhor estirpe pré-socrática, ainda sem levar em conta o ordenamento unitário e absolutista do mundo das idéias, tanto quanto da natureza e da sociedade, que fizeram dos intérpretes de Platão, Hegel e Marx os mais poderosos inimigos da sociedade aberta. (XVII). O título sob o qual reúne a sua obra, Ensiqlopèdia sugere uma leitura dos enciclopedistas franceses, no que tinham de libertário, e de disposição da cultura como enumeração de fragmentos, todos igualmente relevantes, cuja importância se atribui de uma perspectiva da necessidade do conhecimento, para a qual deve contribuir o leitor, idéias centrais de qualquer boa enciclopédia. O epíteto que se lhe segue, Ou Seis Mezes De Huma Enfermidade!, mote a um só tempo irônico e sarcástico, segue a insistente linha da absurdidade literária, pois, numa só aparente concordância com sua fama de doente mental, está a demonstrar, pelo seu conteúdo, qual era a sua doença. Era o modo de Qorpo-Santo declarar, e o confessar, que, durante seis meses (e fora muito modesto nisso) sofrera da aguda febre literária que acomete os que se entregam tão radicalmente, corpo e alma, ao seu fazer literário, de dizer: "Eis a minha doença!". Mas, observe-se, quem o diz é o autor-personagem....não o cidadão José Joaquim de Campos Leão, exemplo típico de uma pessoa que publicamente sucumbe, em seu radicalismo literário, à personagem que criou para si.
        Mas retornemos ao fragmentarismo da sua obra. A uma totalidade formal e materialmente disposta em Unidade, como seria, por exemplo, o livro em formato tradicional, reunindo os temas em seu contexto próprio, com destaque individualizado, Qorpo-Santo prefere a miscelânea jornalística, o almanaque, o magazine, a enciclopédia mundana, em que a totalidade de sua obra literária se esparrama fragmentariamente em meio a toda uma série de preocupações não estritamente estéticas. E ao enumerar os seus volumes, se os denomina de livros (de 1 a 9), e anote-se que possuem todos os mesmos frontispícios, é para fazer ver que o seu trabalho se qualifica como literatura.. Na forma própria ao livro que inventa: livro de conteúdo fragmentário, e fragmentado, a tratar de uma realidade fragmentária, e fragmentada.
        Enquanto pensador, era a justiça (que dá nome a um desses livros (XVIII)), a sua estrela-guia, sua meta, sua meca. Essa era sua única moral, fundada na mesma noção de liberdade, igualdade e fraternidade dos enciclopedistas. Por isso é que nem o moralismo (ou teatro realista) de suas personagens, nem as relações naturais (comédia de costumes) podem representar, em termos absolutos, o mal e/ou o bem. Ambos os caminhos levam a humanidade aos sítios do absurdo exatamente quando tomados aos modos absolutistas. Em ambas, o caos. Daí sua estética impiedosamente fragmentarista. Tanto as relações sociais desconectadas das relações naturais eram absurdas, quanto as relações naturais desconectadas das relações sociais igualmente o eram. Para demonstrar essa absurdidade, esse caos, esse mundo aos pedaços, nada mais apropriado que uma estética radical da absurdidade. É isso que é a estética, que se define a partir do estilo próprio do autor de obra literária, em que sempre se há de seguir a concepção aristotélica de que forma é condição de conteúdo. Para um conteúdo tão fragmentariamente, tão radicalmente absurdo, uma forma ao mesmo tão fragmentariamente quanto radicalmente absurda, em todos os seus elementos. Se a sua ensiqlopèdia é construída como uma colcha de retalhos, algo assim como as atuais agendas dos adolescentes pós-modernos (que são a um só tempo agendas, diários, álbuns de figurinhas, enfim, registro de tudo o quanto lhes faça a cabeça), é porque percebe que o tudo que se passa no mundo compondo a vida humana, possui igual relevo, igual força motriz, sendo descabida a hierarquização dos elementos vitais, assim do humano quanto da natureza e da sociedade. Para ele, como para a pluralidade pós- moderna, um poema é tão importante quanto uma receita culinária. Uma petição judicial é tão significativo quanto um rol de cuidados com a saúde. Uma peça teatral guarda as mesmas proporções que um código de conduta para os jornalistas. Assuntos que se dispõem, fragmentariamente, sem hierarquia gráfica, pelos seus vários livros.
        Ou seja, o mundo, a vida, a natureza, o humano, a própria sociedade, só são percebidos e compreendidos em sua especificidade fragmentária, sem hierarquização. O Todo, Deus, mediado pelos Reis do Universo, aloca em tudo e em todos, os espíritos, as energias vitais. Estes sopram como os ventos através dos humanos, fazendo-os serem, hoje, uns, e amanhã, outros, à semelhança da teoria dos átomos desordenados de Demócrito e Epicuro: ao inteiro acaso. Por isso, todos somos iguais. Todos somos fragmentos em movimento, movimentos ao acaso, constituindo-nos por um processo permanente de união e desunião com os demais fragmentos. Átomos, conjuntos mutáveis de átomos, a nos esbarrar, fundir, desgarrar, num ir e vir incessante, mesmo que alguns tenham se feito carne. O que se constitui em inexorável impossibilidade de agir conforme qualquer ordenamento absolutista, sem que isso nos condene eternamente ao sofrimento, ao desprazer, às relações absurdas e injustas.
        Aos conjuntos mutáveis de átomos Qorpo-Santo acrescenta a idéia de conjuntos voláteis de voluntariedade alheia, e dá-lhes o nome de almas, que compõem, em permanente transação, o espírito de cada indivíduo. Uma bela alegoria desse pensamento encontra-se no filme indicado ao Oscar 2000, Being John Malkovich, em que várias pessoas "freqüentam" o corpo/espírito da personagem-título, fazendo-o agir ora como uns, ora como outros. Com efeito, todo o roteiro de Charlie Kaufman, na leitura que lhe deu a direção de Spike Jonze, nesse filme que nos cinemas brasileiros nos veio com o título de Quero Ser John Malkovich (nome do conhecido ator que o interpreta, alusão pós-moderna à idéia de representação, de interessantes significados), pode ser visto como uma explicitação, uma demonstração fenomenológica das idéias de Qorpo-Santo, em sua peça: Hoje Sou Um; Amanhã, Outro. E que, afinal, são idéias que respeitam à formação da consciência individual, da disfunção entre a personalidade e os seus atos, do fato de que um general às vezes fala como criança; de que uma criança às vezes fala como general. Qorpo-Santo é muito claro quando usa o verbo habitar para definir essa presença "alheia" na consciência individual, exatamente como o faz Charlie Kaufman, no "Manual do Hospedeiro Humano, O Ciclo da Vida do Hospedeiro Humano Conhecido como Lester", livro utilizado pelas personagens do filme, que buscam a imortalidade transferindo-se para a mente de John Malkovich. Habitar a mente de outrem, esta é precisamente a alegoria principal sobre a qual o filme elabora sua ficção. Algo totalmente absurdo, em meados do século XIX, Qorpo-Santo brinca com a aparente absurdidade dos seus pensamentos, tanto quanto com a absurdidade do pensamento de época. Ao centro, sempre, o fato ficcional. Não é por acaso que, no filme, se consulta um tal Manual do Hospedeiro Humano (Ver figura, reprodução das págs. 210/11, do Manual, que acompanha a edição do Filme em DVD, em que essa noção de habitação coletiva é bem clara). Tivéssemos nós acesso "ficcional" a este curioso livro, quem sabe constataríamos que, dele, talvez mesmo em sua "bibliografia", constasse alguma referência à obra de Qorpo-Santo? Ou será que Lester e Qorpo-Santo seriam consciências ocupadas por esses tais Reis do Universo, de que nos fala a peça Hoje Sou Um; Amanhã. Outro...? Algo assim, como uma forma democrática e pluralista de coabitação tanto espiritual quanto natural... Alegoria típica de uma era pós-moderna, Qorpo-Santo anunciara-lhe já em 1866. E que bem exemplifica o caráter profundo e extenso da obra de arte, que há de sempre ser lida, assim a narrativa quanto o cinema, aos seus muitos modos de ler.

...mas desejo que aprendais a conhecer-vos, e aos outros...homens. E o que é o corpo e a alma de um ente qualquer da espécie humana: isto é, que os corpos são verdadeiramente habitações daquelas almas que a Deus apraz fazer habitá-los, e que por isso mesmo todos são iguais perante Deus! (XIX)

r.        Essa disposição fragmentária do humano, primeiro, faz impossível à vida moral guardar correspondência com seu Todo Ideal. As pessoas se movem no ambiente social por ação de múltiplas personas, em si ocultas, ao sabor das várias relações naturais, utilizando o verbo ao puro alvitre do que lhes interessa, por isso que lhes interessa ocasionalmente, apenas nos momentos em que seus discursos são produzidos. E porque é ora "um", ora "outro", que falam e agem, há uma desconexão, individual e social, com a natureza das coisas, que não se alinham a essas mesmas condições ocasionais, a saber, com as suas relações naturais autênticas, sempre subterrâneas, a realidade material do mundo humano. No mesmo diapasão, uma desconexão com os elementos do próprio discurso, arbitrariamente tomado como uma continuidade (por isso absurda descontinuidade) das relações sociais. Sim, nada mais absurdo. E, absurdo dos absurdos, considerar cada personalidade como uma unidade totalizada de elementos que não sejam fragmentos de uns, fragmentos de outros. Portanto, as personas são múltiplas máscaras...de um teatro absurdo. Desviando-se de um xamanismo primário, do fenômeno da "incorporação" psíquica, Qorpo-Santo mais observa a existência de uma confluência, de uma pletora de falas na realidade da existência humana, a que dá o nome de almas por puro didatismo (e estética) do que por algo a ver com a doutrina do espiritismo. Sim, se tudo isso apontava na direção do absurdo, Qorpo-Santo não hesitaria em adequar-lhe, em sua arte de representação, à respectiva linguagem estética. Do outro lado do mundo, um autor russo também fazia dessa idéia, de relações naturais ocultas, a dizer, subterrâneas, o ponto central de sua obra, de sua estética dialogal, fantástica e psicológica, semeadura de algumas teses que fizeram do mundo humano o que é hoje: as de Nietzsche e Freud. Por lá, não o consideraram louco, mas subversivo, fazendo-o amargar as frias cadeias da Sibéria, a tortura mental de um pantomímico pelotão de fuzilamento: Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (XX).

                        Huma pomba azul
                        De rabo branco,
                        A' noite encontrei;
                        De que me assustei!

s.        Qorpo-Santo - é muito importante frisar esse ponto, para bem compreender sua estética, interpretar sua obra, encenar suas peças, representar suas personagens - tinha a exata noção do poder das relações naturais inamovíveis da natureza social do humano, e das absurdidades que a vida social oferecia, como ainda hoje nos oferece. Era um fino, arguto, eficiente observador dessas absurdidades, transpôs, esteticamente, para a sua obra, os frutos desse olhar sobre a realidade empírica. Não transpunha para a sua obra literária, sem mediação artística, os resultados de suas reflexões sobre a realidade apreendida. É isto que se vê claramente no contexto de sua dramaturgia, onde - e até muito pelo contrário do que crêem os apressados - o moralismo integra, em igual proporção às relações naturais, o absurdo da existência social do humano em sua época. Por isso que o próprio "moralismo" passa a constituir-se em personagem absurda, como um miasma, passeando pelo palco em que se desenvolve o drama da absurda existência.
        Retornemos um instante às figuras e falas dos criados antes delineados: pois se é absurdo que os discursos pela moralidade surjam das bocas da criadagem, especialmente se consideramos o contexto de época das personagens, absurdas serão também suas falas - tout court. Para que não se apelide a sua obra, especialmente a dramaturgia, por moralista, por exemplo, há que não confundir os vários discursos presentes no conjunto de seus escritos, sem que se os analise cada qual no que estritamente se revelam. Pois no caso de sua obra nada acrescenta buscar um sistema coerente, olvidando que a presença lado a lado de assuntos díspares possui outra finalidade, qual seja, a da apresentação simultânea de um todo fragmentário (e fragmentado), em que cada parte - "juntando sem juntar" suas várias percepções e reflexões da realidade - tinha origem e finalidade específica, como demonstração estética de um todo que - pessoal e social - era vivido fragmentariamente.
        Que também não se avalie, as qualidades de um texto literário, pelos defeitos de outro, apenas porque uma identidade de autoria. De um modo geral essa verdade, embora de fundamentos notórios, tem escapado aos críticos de Qorpo-Santo. E sua obra é justamente uma das que essa verdade se aplica em toda a sua extensão. Pelo simples motivo de que, tendo-se construído como personagem-autor, mormente por sua escrituração fragmentária, Qorpo-Santo sentia a necessidade de ir registrando, já literariamente, os múltiplos e inesgotáveis fragmentos de realidade que compunham o quadro de absurdidade (ora cômica, ora trágica), este sim, o ponto central da sua atividade febril de escritor. Se isso o levava ao registro automático, descuidado, desses fragmentos, aqui e ali, em nada autoriza o intérprete a julgá-los esteticamente resolvidos, senão também aqui e ali, onde a qualidade estética - estabelecidos os seus pressupostos autorais - se fizer presente. Nem olvidar também que Qorpo-Santo aplicava suas concepções literárias não apenas aos personagens que ia criando, mas, é preciso não esquecer, a si mesmo, à sua própria persona literária, tão absurda quanto as demais..
        Se dentre as várias preocupações de Qorpo-Santo encontrava-se a preocupação moral, em verdade uma intensa preocupação moral, longe está a sua moralidade de um "moralismo" redutor da moral autêntica. Pela simples razão de que obedecia à única moral que aceitava: a sua consciência. Consciência essa que não se impunha em sua obra salvo, e apenas, enquanto o levava a desenhar, nos termos do seu método absurdo-crítico, uma existência em si absurda. O só compulsar os livros da sua Ensiqlopédia, e especialmente os que conteriam matéria estritamente moral, faz perceber uma nítida preocupação de apontar, e registrar, os absurdos do cotidiano, inclusive o seu. Nada mais. Se o fazia às vezes, indiretamente, pela exteriorização de pensamentos de conteúdo moral, ainda aí o fazia para exibir a defasagem entre esses pensamentos - que, afinal, eram pensamentos extraídos de um ideário comum - com a realidade material da existência social. Pois se Qorpo-Santo buscava incessantemente construir uma estética própria a pintar o absurdo, é totalmente injusto, pior, infundado, atacar exatamente o contexto da obra em que a consegue realizar, por conta dos escritos onde essa estética sequer se esboçou. Pois sempre só o que importa é a obra literária realizada.

t.        Dos livros conhecidos da Ensiqlopédia (XXI), além do Livro 4 (Teatro), onde estão reunidas as suas dezessete comédias (XXII), enumera-se: Poezia e Proza (Livro 1), Pençamentos (Livro 2), Saude e Justiça (Livro 7), Micelania Qurioza (Livro 8), e Interpretaçoes - Pontos Qe Parecem Qontraditorios No Novo Testamento De Nosso Senhor Jezusqristo; Alguns Pençamentos Por Mim Esqritos Nestes Ultimos Tempos; Rèstos Qe Qreio Julgo ou Pênso Naõ Terem Sido Impreços Em Algum Dos Meus Oito Livros Ja Publiqados; e, finalmente, Introdução. (Livro 9) (XXIII). Já se vê, tão só pela própria enumeração desses Livros, que o seu autor-personagem - ecce-homo! - é, antes de tudo, e em extremo, um anticonservador, em nada obediente à religião, à moral, costumes e leis, de sua época. Poder-se-á considerá-lo um artista delirante, até empolgado por questões de ordem moral, mas daí a tomá-lo por moralista é o mesmo que dizer dele um homem religioso, em face das religiosidades presentes em seus escritos. A obra de Qorpo-Santo é, pois, uma crítica exacerbada da condição humana, da realidade social, moral e religiosa, e - pecado dos pecados! - estética, do seu tempo. Em que suas personagens todas se apresentam sempre como negação das absurdidades da ordem vigente, inclusive, e muito especialmente, da ordem literária vigente. É isto que encontramos, e à saciedade, em seus escritos. Não fosse assim, bem o sabemos nós, sua rica dramaturgia não permaneceria esquecida ao longo de tanto tempo. Ainda que o seu autor, ou seu autor-personagem, fora mesmo inteiramente louco.

                        Tão lindas as aranhas
                        Tão belas, tão ternas
                        Pois caem do teto
                        E não quebram as pernas! (XXIV)

u.        Tudo em Qorpo-Santo é, pois, o absurdo. Qualquer interpretação para fora da absurdidade constituir-se-á, inexoravelmente, no mero acréscimo de mais absurdo. Eis a chave para a compreensão de toda a sua escritura, de toda a sua vida de autor-personagem: uma terrível opção pela escrituração e vivenciação da categoria do absurdo. Para uma vida absurda, uma realidade absurda, um escritor absurdo, um texto absurdo. Tal como um Salvador Dali tomaria a si mesmo o surrealismo como existência, o método paranóico-crítico como seu particular olhar de criação estética, assim Qorpo-Santo o faz com seu método, que se poderia denominar de método absurdo-crítico, tomando para si o absurdo como existência, o absurdo existencial. A própria noção de fragmentarismo em sua obra há de ser vista em seu duplo aspecto: o de ser um modo estético de dispor esse absurdo como o discurso artístico apropriado à transmissão das suas idéias estéticas - seria injusto não reconhecê-lo - mas ainda como o discurso que, e muito especialmente em sua época, havia de ser percebido como uma retórica em si absurda. Seu fragmentarismo como estética, a que um tanto ingenuamente chama de "Miscelâneas" em um dos seus livros, em verdade percorre toda a sua obra, aproximando-se, em muitos casos, daquele modo de dispor os pensamentos que fez de Novalis um precursor da lírica moderna (ou, melhor ainda diria, pós-moderna, no mesmo sentido de romantismo progressivo de que nos fala Schlegel).

v.        Importante ressalvar - e esta será uma das razões de serem os temas morais recorrentes em toda a sua obra - que existia, como alimento energético da sua estética, no homem e no artista Qorpo-Santo, um norte moral que aponta na direção da Verdade e da Justiça. Só que, nele, isso é muito mais que uma mera preservação de regras morais. Até porque as oposições relações naturais/relações sociais (tidas por morais) são sempre de rara conciliação, mais valendo sabê-las que resolvê-las, o que já seria um belo e grande passo (Hoje sou um; e amanhã outro, ato primeiro). Com efeito, o próprio título de um dos seus livros - A Justiça; a publicação de suas petições e laudos médicos a respeito da demanda judicial a provar sua sanidade mental e recuperar a livre disposição dos seus bens; a insistência na divulgação dos seus bens e os fatos relevantes de sua vida institucional; enfim, em todo o correr de sua poesia e prosa, suas máximas e, especialmente, no questionamento de interpretações de episódios do Novo Testamento, no formular uma espécie de código de ética jornalística, tudo aponta no sentido de uma forte preocupação com esses temas. Temas esses que, em sua obra de criação literária, e muito particularmente em sua dramaturgia, formam mais o contexto em que se insere criativamente a sua estética, do que propriamente a retórica do texto escriturado. Esta, radical retórica do absurdo, é que vem a ser a chave teórica a interpretar, em qualquer sentido, os textos da Ensiqlopèdia. Até porque, a par dessa preocupação do autor com a verdade e a justiça, no mais das vezes esses termos são apropriados por uma retórica que se faz irônica, sarcástica e, precisamente por isso, cômica, onde a pontuação pelo absurdo é sempre o mote principal.

x.        Não há na obra de Qorpo-Santo - e isso é uma de suas características das mais interessantes, e que por sua vez também encaminha a interpretação puramente estética de sua literatura - qualquer sinal de "ressentimento" em sua obra, mormente em sua obra teatral, mesmo quando se percebe um travo tragicômico nos absurdos. O tom que percorre toda a sua criação literária é sempre afinado com o descortino das verdades da vida; de pontuação de inverdades e de injustos corriqueiros; de questionamento de fatos institucionais tidos como normalidade social; de informação sobre coisas de interesse geral; de apelo ao bom-senso; de preocupação com a família, inclusive com a sua base de sustentação, as relações naturais; e tantas outras questões, até mesmo a reformulação do idioma escrito. Sobretudo, e sempre, um tom cheio de comicidade, alegria de viver, pacifismo, de conciliação entre os opostos sociais, que beiram a inocência e a ternura.
        Especialmente se considerarmos as agruras de sua vida, as perseguições de todo tipo, as incompreensões de todo naipe, a obra de Qorpo-Santo nos convida a uma luta pela existência cujos combustíveis mais importantes sejam o humor, a compreensão, a ingenuidade, a sensualidade, a aceitação do absurdo, enfim, o amor irredutível pelo humano e sua humanidade.

                        Quem diria
                        Q'huma peninha
                        Mataria
                        Huma aranha
                        Tamanha?!
                        - Quem adevinha?!

y.        Cristianizado por seus contemporâneos, Qorpo-Santo manteve-se fiel às suas convicções cristãs até o último suspiro da sua obra, cuja página final - e isso é emblemático quanto à sua literatura, e alegórico quanto ao que seja o fazer literário - apresenta-se com quatro poemas dispostos em forma de crucifixo. (XXV), formando um poema-visual de intensa significação estética. Percorrida por completo toda a sua via crucis, de autor-personagem, e de personagem-autor, a crucificação de seu qorpo-santo, inscrita na cruz dos seus versos, estava concluída. Uma metáfora para o ofício literário similar àquela que um Henry Miller também utilizaria, na sua famosa trilogia, quando a denominou A Crucificação Encarnada. Qorpo-Santo poderia então voltar à terra, ao rés-do-chão das coisas mundanas, como um revisor da obra obtida através de sua persona literária, então crucificada, tal qual os versos aos pés da cruz, correspondente aos pés do crucificado, o anuncia:

                        Cesso a vida de - qompòr;
                        Cesso a vida d'esqritòr;
                        Passo a rever minhas obras;
                        Passo a qortar-lhes as sobras.

        Esses versos comprovam, sem sombra de dúvidas, que a personificação da personagem-autor, Qorpo-Santo, tinha sido o instrumento de viver a sua arte, de aproximação total com o reino da imaginação criadora, de modo a obter para o seu ofício toda a energia favorável à constituição de uma estética que faria de si o escritor que buscava ser. Nele imperava uma religiosidade autêntica, que não se fingia por trás de um comportamento religioso mundano. Que não fugia aos questionamentos necessários ao fortalecimento de sua fé. Que o fez largar de sua fortuna, tomar da sua cruz, e com ela percorrer a sua própria via crucis sem perder a essência de um fervoroso cristão: a opção em seguir a divina voz interior; a mansidão com que enfrentou seus perseguidores; o inequívoco e sempre bem-humorado amor pelo humano, no remoinho de equívocos em que somos levados de roldão pelas relações naturais inexauríveis, tanto quanto pelas dificuldades imanentes à construção de relações sociais mais justas e verdadeiras, isentas das absurdidades a que um estágio inferior da cultura espiritual do humano, infelizmente, ainda nos determina a todos. E o realizou com fé, coragem, determinação, arte e, sobretudo, com alegria, humor, e poesia. Sua cruz foi a sua personagem, sua fé em Deus exercitou-se no cotidiano literário, em viver a vida em permanente estado de poesia, sabedor de que esta é a energia presente no verbo, o sopro de Deus. Pois o que constatamos em toda a obra do autor gaúcho é a preocupação, a dedicação aos elementos fundamentais de toda arte, a poesia (como gênese) e a linguagem (que inclui a língua); a ética e a justiça; e o teatro, como representação viva, vivificadora, de sua estética (palavra que já pressupõe a ética), de que se serve para o vaticínio (palavra que pressupõe vate), tal qual um profeta (palavra que pressupõe poeta). Mas, é claro, jamais nos iludamos com a sua textualidade: pois Qorpo-Santo foi sempre o poeta. E, como já disse alhures, parodiando Fernando Pessoa, o poeta é um fingidor; finge tão completamente, que chega a fingir que é fingimento, o fingimento que deveras finge (expressão que pressupõe esfinge)...

Ministro - Nessa idade, informam-me... isto é, deixou o exercício do Magistério para começar a produzir de todos os modos: e a profetizar!
Rei - Então também foi ou é profeta!?
Ministro - Sim, Senhor. Tudo quanto disse que havia acontecer, tem acontecido; e se espera que acontecerá!

(trecho de Hoje Sou Um; E Amanhã Outro)

w.        Qorpo-Santo, ao que tudo indica, era um homem simples. Se possuía alguma cultura, longe decerto estava de ser um erudito, ou um intelectual no sentido que lhe emprestamos corriqueiramente. Seus poemas e máximas, grosso modo, estão muito aquém das suas peças. Seus conhecimentos de teoria e crítica literária eram, muito provavelmente, limitados. Mas nele, a máxima de S. Paulo - se te foi dado escrever, escreva! - parece ter encontrado ressonância máxima. E a sua fé no ofício, para o qual se sentia possuidor da vertebral conditio sine qua non: a vocação, que aliada à sua opção radical pela verdade literária, acabam por lhe proporcionar os merecidos frutos estéticos tão bem dispostos na sua obra de dramaturgia. Se só aqui e ali se podem apreciar essas invenções estéticas ao longo de sua ensiqlopèdia, mãos à obra! que vale a pena. Surpreender-se-á o leitor atento ao descobrir diamantes de várias facetas. Aqui, um poemeto tão delicado e terno que, como as suas famosas aranhas, caem do teto e não quebram as pernas. Ali, um mote que nos diz das suas experiências de vida. Súbito, um poema malicioso, cheio de duplos sentidos, em que sobra uma certa antropofagia erótica (XXVI), como em Linguagem, Huma Aranha e Penetração. Nisto também Qorpo-Santo foi precursor. Ao buscar dissipar as falsas contradições entre Eros e Jesus, uma das pedras de toque do Movimento Hippie, e que só encontraria um filósofo à altura da grandiosidade do tema em William Reich, Qorpo-Santo põe em evidência uma hipocrisia que só se inicia desmontar-se na pós-modernidade. Celebrando a vida, ou, como dizia, as relações naturais, mantinha-se inteiramente fiel à concepção cristã do mundo. E, o fazia com humor, de certa forma aceitando a comédia humana, tanto quanto a comédia da natureza. O humor viril de Penetração, por exemplo, possui aquele tom de mote machista que, afinal, fazia, e - sejamos todos sinceros - ainda hoje se faz, parte de todo um contexto em que a sexualidade, o ato sexual, socialmente se exprime e se exercita.

Vi dançar huma lamparina!
Quem acredita
Que tão bem grita
E'sta celebre bailarina!?

Outra - ouvi cantar:
Alguém acredita
- Era daquela par!?

Outra - ouvi gemer:
Alguém acredita
- Queria m'entender!?

H'um'outra vi furada:
Alguém o acredita?
- Pedia ser soprada!

D'outra ouvi louvor:
Alguém acredita
- Fazia de tenor!?

N'outra vi hum facho:
Alguém acredita
- Era prompto baxo!

Outra - remechia:
Alguém acredita
- Toda se-lambia!?

Grito ouvi d'uma - mui alto:
Pergunto: - Que é?
Responde com fé:
Pois não conhece contralto!?

        Mas que nada seja considerado sem o olhar ficcional. Pois Qorpo-Santo, como todos, também é um fingidor. Repita-se: para a avaliação literária, tanto quanto para o gozo do prazer estético, há que se levar em conta apenas a obra efetivamente realizada. O que, no caso de Qorpo-Santo, em nada é pouca nem pequena, a glória estética conquistada. Fé incondicional, e sentimento do mundo, o mesmo de que nos fala Drummond em seu belo poema,foram as principais ferramentas à construção de sua obra. Também a aventura e a reflexão espiritual, de que a própria vida foi régua e compasso. Nesse teor, sua aceitação cristã do absurdo da existência humana - por qual razão escusar-se afirmar - terá em muito contribuído para o sucesso da sua arte literária. De toda maneira, qualquer interpretação da obra de Qorpo-Santo há que ainda considerar, na elaboração da sua teorética, essa religiosidade contida, secreta aqui, desbragada ali, sempre tão presente, sempre tão pulsante.
        Finalmente, é preciso que também se diga, a obra teatral de Qorpo-Santo, espera ainda por encenações à altura do rol de suas possibilidades estéticas, especialmente nestes tempos pós-modernos. Acrescentar-lhe novos tons autorais, certamente será das mais ricas, das mais profícuas tarefas. Especialmente se levar em consideração os alguns elementos aqui delineados, notadamente os que relacionam as absurdidades do texto de Qorpo-Santo, não apenas com ênfase no cômico, também com o trágico, que se insere numa perspectiva tragicômica da existência humana. Nos dias que correm, decerto seriam bastante úteis

Eu sou vida;
Eu não sou morte!
É esta minha sorte;
É esta minha lida! (XXVII)

NOTAS

I.-        Cf. QORPO-SANTO, José Joaquim De Campos Leão. Teatro Completo. Rio de Janeiro: MEC/SEAC/FUNARTE/SNT, 1980. Fixação do texto por Guilhermino César. Vale anotar aqui o descontentamento de Qorpo-Santo com os profissionais de gráfica que alteravam seu texto a adaptá-lo à linguagem oficial. Particularmente, preferiria transcrevê-los tal qual Qorpo-Santo escriturou. Infelizmente, o Livro 4, onde constam as suas comédias, não me foi franqueado por questões ligadas à precariedade do equipamento reprográfico que instalei na Biblioteca Julio Petersen vis-à-vis a fragilidade, por antigüidade e falta de anteriores cuidados de preservação, desses originais. II.- Autobiografia esta que, à guisa de Introdução, Qorpo-Santo publicou repetidamente, em praticamente todos os livros da sua Ensiqlopédia. Vale observar que, no seu último livro, o Livro 9, essa introdução autobiográfica foi posta ao final da obra, ainda que mantido o nome-título de Introdução. Sob esse aspecto de registro autobiográfico muito se pode dizer que ainda não foi dito pelos estudiosos da Ensiqlopédia, diretamente vinculada à compreensão e interpretação crítica de alguns pontos da sua obra, desde que não se a reduza à mera aplicação, sem as devidas cautelas, do método biográfico. Tal qual se pode fazer com referência à função do sobrenome Qorpo-Santo. Ou seja, que José Joaquim de Campos Leão não cunhou para si apenas uma alcunha, ou codinome, ou mesmo um pseudônimo. Mas alterou conscientemente seu nome de batismo, em grafia e acréscimo de fictício sobrenome, para assim passar a chamar-se: Jozè Joaqim De Qampos Leão Qorpo-Santo. E o fez por opção literária. III.- Os fatos sobre essa primeira montagem, narrados pelo diretor de teatro, dramaturgo, produtor teatral Antonio Carlos de Sena, com quem tive o prazer de prosear sobre as comédias - obra e vida - de Qorpo-Santo, constam de uma gravação da entrevista que concedeu ao professor e escritor Luiz Antonio de Assis Brasil no programa da televisão gaúcha Tempo de Letras (edição out./2000), patrocinado pelo Departamento de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, produzido pela VIDEOPUC. IV.- A nota de Guilhermino César (Qorpo-Santo, apud ob.cit., p.103), sobre essa personagem, parece corroborar a tese que defendo sobre a natureza absurda do discurso moralista nas comédias de Qorpo-Santo: "É possível que o nome Barriôs (Q.-S. grafou Barriôz) fosse sugerido ao autor por Geraldo Barrios, ditador da América Central, então em grande evidência. Com efeito, esse político de El Salvador, depois de ascender à presidência da república, proclamou-se ditador, mas foi escorraçado do poder. Fuzilaram-no em 1865, por ordem de Dueñas, seu competidor, então na chefia do governo salvadorenho. A peça Mateus e Mateusa foi escrita em maio de 1866, logo após tais ocorrências, muito comentadas pelos jornais brasileiros. - A menos que Qorpo-Santo tivesse a intenção - o que é muito provável - de satirizar o advogado porto-alegrense Emílio Valentim Barrios, com quem andava às turras. (...)". (grifei em negrito). Qorpo-Santo, pois não se pode inferir, com certeza, só pelos fatos narrados por Guilhermino César, talvez não andasse propriamente, ou especialmente, às turras com o advogado Barrios, mas o incluíra no rol das pessoas que o perseguiam, em carta a D. Pedro II (idem, cap. II, item III, p. s/n.). De qualquer forma, essa importante informação de Guilhermino ainda mais corrobora a tese que o meu texto afirma. V.- Ou seja, qualquer reflexão sobre o texto teatral não pode deixar de encontrar a problemática da representação: o estudo do texto teatral só pode identificar-se com os seus prolegômenos no ponto de partida necessário (mas não suficiente) a esta prática totalizante que é o teatro em concreto (Cf. UBERSFELD, Anne. Lire le Théâtre. Paris: Éditions sociales, 1993. p. 11) VI.- Cf. QORPO-SANTO, Jozè Joaqim De Qampos Leão. Ensiqlopèdia: Ou Seis Mezes de Huma Enfermidade!, Livro n. 1, Poezia e Proza. Porto Alegre: Imprensa Literária, 1877. p. 15. Repare-se que a grafia dos versos encontra-se de acordo a ortografia oficial da época (V. Nota I). A cópia xerox obtida não possui a folha de rosto, que deve ter-se perdido, por isso que intitulei a obra conforme Qorpo-Santo fez com aquelas em que se preservou a face original. Pela situação do poema transcrito, neste Livro n. 1, acreditamos que tenha sido escrito aos inícios da década de 1860, muito provavelmente antes da comédia quase homônima, o que apontaria para uma progressiva evolução do seu pensamento estético. Em 1877 Qorpo-Santo funda sua Tipografia-Qorpo-Santo, que imprimirá os demais exemplares da Ensiqlopèdia. VII.- Trata-se de Friedrich Nietzsche, naturalmente... VIII.- A referência aos Reis do Universo em Hoje Sou Um; E Amanhã Outro, quando o Ministro descreve as qualidades do próprio Qorpo-Santo ao seu Rei, é uma pérola de ironia e sátira. Ao contrário do que muitos afirmam, Qorpo-Santo não é aí megalômano, mas apenas ri de si mesmo, estatuindo para si qualidades obviamente exageradas como núcleo de comicidade e absurdo dessa sua peça. É gozação de si mesmo, ironizando-se e satirizando-se, pura utilização do exagero como elemento ficcional do absurdo, que já estaria claro quando na fala: "...que esse homem viveu em um retiro por espaço de um ano ou mais, onde produziu numerosos trabalhos sobre todas as ciências, compondo uma obra de 400 páginas...". No entanto, quando o Ministro acrescenta que "Ainda não é tudo, Senhor! Esse homem era durante esse tempo de jejum, estudo e oração - alimentado pelos Reis do Universo, com exceção dos de palha!", é verdadeiramente comprar o absurdo por realidade continuar acreditando na megalomania do autor. E Qorpo-Santo certamente daria boas risadas de alegre satisfação em ver essa miscigenação de elementos provocar o resultado que, afinal, buscava. Tal confusão justifica sua obra da vida absurda. Essa, inclusive, parece ser a sua maior diversão. Alguns de seus poemetos, inclusive, tocam o tema das confusões que provoca. IX.- Esse poema consta da última página, do último Livro, o de n.9 da Ensiqlopèdia, fechando, pois, a sua obra escrita. Curiosamente, mas não por acaso, esta última página (cuja cópia se insere logo ao final desse estudo) encerra-se com quatro poemas dispostos em forma de cruz. (cf. os fragmentos 31/2). Observe-se que o poema em tela é justo colocado à parte superior do crucifixo, onde se situa, simbolicamente, a cabeça do crucificado. Sob o sugestivo título de Censura. X.- A referência à identidade entre a sua escritura e a fotografia, nesse poema, igualmente reforça, mais do que aparentemente nega, a concepção propositadamente absurda de toda a sua obra. Sua afirmação aqui corresponde a um alerta aos seus censores no sentido de que - achem absurda quanto quiserem a sua literatura - não pode ser censurada, porque ela é tão absurda quanto a realidade o é... qual de fotografia - ato! Portanto, se querem reclamar da feiúra da foto, a culpa não é do fotógrafo... Ou, em outras palavras, se querem reclamar do absurdo das suas comédias, a culpa não é do "comediante". XI.- Essa passagem - de Hoje Sou Um; E Amanhã Outro -,é deliciosamente absurda. Reunindo, de um lado, ironia e sátira; de outro, uma pretensa ciência. Até um ponto em que não se sabe mais as respectivas fronteiras, acentuando a absurdidade total da peça. Como resultado, e aos que a levam a sério, absurda é qualquer interpretação pelo fictício; aos que não, ainda mais absurda a interpretação pelo científico. Mas é mesmo essa superposição de absurdos que fazem a realidade tal Qorpo-Santo via e vivia. Estaria tão desprovido de razão? XII.- Cf. AGUIAR, Flávio. Os Homens Precários, inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo-Santo. Porto Alegre: A Nação/IEL, 1975. p. 94. Em que pese a obra magnífica de Flávio Aguiar, e suas magistrais observações, não podemos aceitar, sob uma perspectiva mais funda e abrangente das comédias de Qorpo-Santo, esse "moralismo" redutor que causa mais de um equívoco na interpretação de sua ficção (e na sua encenação). XIII.- Seriam esses os seus "moralizadores"?... XIV.- Outro poema inscrito ao crucifixo do final da obra (nota IX acima). Este, ao braço esquerdo da cruz. XV.- Conforme nota III acima. Essas observações dizem respeito não apenas às técnicas de teatro, mas, especialmente pela liberdade explicitamente concedida por Qorpo-Santo aos produtores e diretores teatrais, para alterar seus textos de acordo com as suas eventuais necessidades. Antecipando, de certa forma, aquele desprendimento do texto pregado, por exemplo, por um Antonin Artaud. Homem de teatro, Antonio Carlos de Sena sabe que essa liberdade, acompanhada das demais informações dos textos, não constituía uma precariedade do autor como criador, mas uma invenção inovadora ao estreito relacionamento entre texto e montagem, cujo exemplo mais notório são as palavras finais do livro em que reuniu as suas comédias: "As pessoas que comprarem e quiserem levar à cena qualquer das minhas comédias podem; bem como fazer quaisquer ligeiras alterações, corrigir alguns erros e algumas faltas, quer de composição, quer de impressão, que a mim, por inúmeros estorvos, foi impossível". XVI.- In QORPO-SANTO. Poemas. Denise Espírito Santo (org.). Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. p. 76. XVII.- POPPER, Karl Raimund. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Milton Amado (trad.). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1974. XVIII.- Esse A Justiça, publicado no Livro 7 da Ensiqlopèdia, foi um jornal que Qorpo-Santo redigiu "por alguns mezes" em Porto Alegre no ano de 1968, e em Alegrete em 1871, em que registrou o transcorrer da demanda judicial que o levou a ter seus bens interditados, e a ser internado em hospitais para exames de sanidade mental. XIX.- Trecho de Hoje Sou Um; E Amanhã Outro: aqui a personagem de Qorpo-Santo aponta na direção de uma regra moral, mas sem moralismo. E este é um dos principais olhares do homem Qorpo-Santo, como já se viu. Esse elemento de religiosidade está sempre "por trás" de toda a sua obra. Faz parte do universo do autor. Entretanto, isto, por si só, não explica a obra, sendo ao máximo um vago elemento de interpretação crítica do artista. Se a aplicação exagerada e unilateral do método do formalismo russo, e Shklovski preferia método morfológico, arrisca esvaziar a obra do seu conteúdo imaginário, vale dizer, de sensibilidade, por outro lado, voltar a um biografismo de um romantismo pré-moderno em nada auxilia a interpretação crítica da obra literária. É óbvio que alguns dos traços mais fortes do pensamento e da vida do artista se incluem, necessariamente, na obra de arte; mas como um pano de fundo, no máximo como uma das suas ferramentas demiúrgicas, jamais como elemento suficiente a explicá-la. Até porque, e no caso presente com muito mais razão, esses aspectos passam para a obra de arte mediados pelo ficcional, que, afinal de contas, é - e tão apenas - o que se realizou (ou não...) plenamente. XX.- Cf. BAKHTIN, Mikail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1982. p. 222-239. Também sob uma outra perspectiva a obra de Qorpo-Santo aproxima-se do grande romancista russo, influência decisiva tanto para Nietzsche quanto para Freud, que beberam em Dostoiévski a essência de suas filosofias. A percepção de que tanto o fisiologismo, o naturalismo (as relações naturais), quanto o positivismo (o "moralismo" do criado Barriôz) são insuficientes para resolver o caos, o absurdo da existência humana colocada em termos sociais e morais. Para conferir, na base, como esses elementos se inter-relacionam na obra dostoievskiana, leia-se (ou releia-se) as Memórias do Subsolo, aliás recentemente reeditado pela editora 34, em tradução do conceituado Boris Schnaiderman. XXI.- Com efeito, estão desaparecidos os Livros 3, 5 e 6, como parte do mistério que cerca o "descobrimento" de Qorpo-Santo, pois, a julgar pelas informações presentes nos diversos estudos sobre a sua obra, a trajetória dos textos conhecidos, em mãos ora de uns, ora de outros (et pour cause, talvez), ainda não está devidamente esclarecida, o que pode proporcionar ao pesquisador especializado um instigante tema de investigação bibliográfica. XXII.- A julgar pelo período único em que foram escritas as comédias de Qorpo-Santo, reunidas no Livro 4 da Ensiqlopèdia, é muito provável que sejam suas únicas incursões no gênero, estabelecendo-se, assim, uma unidade criativa de seu teatro nonsense. Dentre essas suas peças, uma delas se apresenta ocupando somente uma página, em duas colunas, e acaba (sem nenhuma explicação do autor, seja ao seu final, seja ao longo de todo o Livro 4), ainda na cena primeira do primeiro ato. Muito embora sob o seu título - Uma Pitada de Rapé - o autor tenha indicado tratar-se de uma comédia em três atos. Como cada uma das peças possui numeração autônoma, fica-se sem saber se o abrupto encerramento teria como causa uma escritura inconclusa, uma falha de edição, ou mesmo inconcludente, com ou sem a intencionalidade do autor. Afinal, o seu título é bem sugestivo no sentido de tratar-se apenas de "uma pitada"...de rapé... Particularmente, fico com esta última interpretação, correndo o risco de ser desmentido pelo aparecimento de um outro exemplar em que o texto surja em completude (aliás, pelo mistério que cerca o "surgimento" dos Livros, é preciso cautela a verificar autenticidades e/ou eventuais escritas "mediúnicas"...). Fico com essa última interpretação, especialmente, por ser bem mais interessante e consentânea ao absurdo cômico de Qorpo-Santo. XXIII.- Introdução exaustivamente republicada ao longo dos vários Livros. Ponto curioso, que merece um estudo à parte, é o fato de Qorpo-Santo sempre a finalizar, inclusive na sua última republicação, ao final do Livro 9, na penúltima página de toda a sua Ensiqlopèdia, com a referência de que "em 1851, estudante, hum mez depois de iniciado na Fidelidade e Firmeza" (seguem-se três pontos em triângulo), nela ter sido "honrado com o grau de Mestre", muito provavelmente uma afirmação de ter sido esse o fato de maior relevância em toda a sua atribulada existência. XXIV.- In QORPO-SANTO. Poemas. Denise Espírito Santo (org.). Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. p. 33. Esse poemeto, com que a autora abre a obra de Qorpo-Santo, é o mais conhecido, e o mais citado, dos seus poemas e, ainda hoje, bastante popular entre os gaúchos. XXV.- Veja-se a disposição dos poemas, a página final de toda a Ensiqlopèdia, cuja cópia encontra-se logo a seguir das presentes notas. XXVI.- No exato sentido em que uso a expressão, antropofagia erótica, em meus Delírios Antropofágicos (in Ghesas de Eros). Aliás, essa celebração, e a um só tempo, de Eros e de Jesus, merece um estudo mais detalhado na medida em que mesmo nisso Qorpo-Santo foi precursor, especialmente no que respeita a uma semiologia de sua peça As Relações Naturais. XXVII.- Segunda estrofe do poema que abre a peça homônima aos seus dois primeiros versos, cuja combinação, versos e título, sugere uma profunda simpatia para com as relações naturais, tendo em vista que no texto são essas as primeiras palavras da personagem Lindo, cujo direito de possuir Linda funda-se nas leis naturais do amor, em oposição às leis sociais do casamento. Ainda mais porque, na peça, a realização do ato sexual (relação natural), entre Lindo e Linda, antecedeu o do casamento (relação social), entre esta e Rapaz, o marido. Esses versos, além de jogar uma pá de cal no propalado "moralismo" de Qorpo-Santo, une-se ao pensamento do cristianismo primitivo, anulando a falsa contradição entre natureza e religiosidade cristã, no mesmo sentido do que, quase um século depois, viria a ser objeto de um Wilhelm Reich, por exemplo (REICH, Wilhelm. O Assassinato de Cristo. São Paulo: Martins Fontes Editora, 4.a ed., 1991 - texto escrito em 1951), e uma das pedras de toque do Movimento Hippie ( Cf. os filmes Jesus Cristo Superstar e Godspell, p.ex.).

        Os versos desse poema encontram-se em conformidade com a disposição adequada ao texto da peça, como assim Qorpo-Santo criou. Mas eu gostaria de encerrar essa aventura literária, pois peregrinar pela obra e pela história de Qorpo-Santo é uma verdadeira aventura (no bom sentido romanesco do termo), trocando a ordem dos dois últimos versos desse poema:

Eu sou vida;
Eu não sou morte!
É esta minha lida;
É esta minha sorte!







BIBLIOGRAFIA QORPO-SANTO:

AGUIAR, Flávio Wolff de. Um "Cazo" À Parte. Antologia do Teatro Brasileiro. . São Paulo: Editora SENAC, 1998.

_____________________. Os Homens Precários - Inovação e Convenção Na Dramaturgia de Qorpo-Santo. Porto Alegre: A Nação/INL, 1975.

ASSIS BRASIL, Luis Antonio. Cães da Província. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 8a. Edição, 1999.

BACKES, Marcelo. Prefácio a Qorpo-Santo - As Relações Naturais. Três Comédias. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1998.

CESAR, Guilhermino. O Que Era E O Que Não Devia Ser . In: Qorpo-Santo - Teatro Completo. Porto Alegre: Edições da UFRGS, 1969; Rio de Janeiro: MEC/SEAC/FUNARTE/SNT, 1980.

ESPÍRITO SANTO, Denise. A Poesia nonsense de Qorpo-Santo. In: Qorpo-Santo - Poemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.

FRAGA, Eudinyr. Qorpo-Santo: Surrealismo ou Absurdo?. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988.

FREITAS, José. TRIUNFO Na História Do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Meridional, 1963.

MARQUES, Maria Valquíria Alves. Escritos Sobre Um Qorpo. São Paulo: Annablume Editora, 1993

MARTINS, Leda Maria. O Moderno Teatro de Qorpo-Santo. Belo Horizonte: Editora UFMG ; Ouro Preto: UFOP, 1991.

PEREIRA DA SILVA, Hélcio. Qorpo-Santo: universo do absurdo. Rio de Janeiro: Edições do Colégio Pedro II, 1983.

SOUZA, Maria Cristina de. Qorpo-Santo - A Loucura Criadora. Internet: http://www.cefetpr.br/deptos/dacex/Qsanto.htm, 27/09/00.

REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS:

Qorpo-Santo: Luiz Antonio de Assis Brasis entrevista Antônio Carlos de Sena. Programa Tempo de Letras. UNITV. PUCRS. Edição VídeoPuc, 2000. (VHS/NTSC).

Quero Ser John Malkovitch (Being John Malkovitch). Roteiro de Charlie Kaufman. Direção: Spike Jonze. Columbia Tristar Homevídeo/Universal Filmes, 2000 (DVD).